O Café Fresco de Judapest
No amanhecer tranquilo de Budapeste, os primeiros raios de sol banhavam as margens do rio Danúbio, lançando um brilho dourado sobre uma cidade que estava no auge de sua transformação. Era o final do século XIX, e Budapeste estava prestes a revelar seu esplendor em meio a uma Europa em constante mudança.
A Áustria-Hungria, com sua capital dual de Viena e Budapeste, estava florescendo sob o governo de Franz Joseph I, e a emancipação dos judeus estava desempenhando um papel fundamental nesse renascimento.
A comunidade judaica de Budapeste, conhecida carinhosamente como Judapest ou Meca Judaica, havia prosperado com as mudanças trazidas pela emancipação. As restrições que antes limitavam suas vidas e oportunidades agora estavam sendo gradualmente levantadas. Os judeus haviam se estabelecido em diversos setores da sociedade, contribuindo para a cultura, a economia e as artes.
Jakob Herzl, agora um respeitado membro da comunidade, vivia nesse ambiente de renovação e possibilidades. A cidade, com suas pontes majestosas que cruzavam o Danúbio e seus cafés elegantes onde as ideias de igualdade fluíam tão livremente quanto o café fresco da manhã, era o cenário perfeito para uma vida judaica “light”.
Ele, assim como muitos outros judeus da época, viu-se gradualmente afastando dos costumes ortodoxos de seu pai à medida que a cidade evoluía diante de seus olhos. Budapeste era um centro de contrastes, onde a tradição judaica secular se entrelaçava com as oportunidades oferecidas pela modernidade. Apesar de Jakob ter abandonado alguma das tradições mais rígidas, ele ainda mantinha sua conexão com a comunidade judaica. Nos feriados, frequentava a grandiosa sinagoga de Tabakstrass, que diferente dos templos da Alemanha, mantinha os costumes ortodoxos.
O orgulho de Jakob, no entanto, residia em seu filho, Theodor Herzl. O jovem Theodor havia crescido em Budapeste e estudado até os 10 anos em colégio judaico. Era um garoto brilhante, que se destacava na escola e demonstrava um interesse pela tradição judaica, um interesse que iria moldar sua personalidade. Durante sua infância, a história do êxodo do Egito deixou uma profunda impressão em Theodor. No entanto, a maneira como a história foi contada pelo professor, de forma seca e fria, o deixou desiludido.
“Eu observava o professor enquanto ele contava a história da saída de Israel do Egito, da escravidão para a redenção, das trevas para a luz, e seu rosto estava tão tranquilo e pacífico – uma maneira vista apenas quando se relata eventos mundanos que não importam. Deve ser, eu me disse, que toda a história deste evento é apenas uma ficção, coisas que nunca aconteceram e foram inventadas apenas para torturar as almas de crianças como eu”
Aos doze anos, quando Theodor Herzl se aproximava de seu Bar Mitzvá, ele mergulhou nas páginas de um livro em alemão que continha a história do Messias, o futuro rei de Israel, cuja chegada estava associada à imagem de um homem humilde montado em um burro. Contudo, as informações sobre essa lenda estavam fragmentadas, deixando-o com a sensação de que algo essencial estava ausente. Apesar dessa lacuna, aquele fragmento da narrativa messiânica acendeu sua imaginação de maneira singular.
Foi durante uma noite permeada por inquietação que Theodor Herzl teve um sonho misterioso. Nele, o Rei Messias apareceu, exibindo uma aura de dignidade e glória. Com ternura, ergueu o jovem Theodor em seus braços e juntos alçaram voo nas asas do vento. Em meio a uma nuvem resplandecente, de beleza inefável, encontraram a figura de Moisés, cuja aparência lembrava a escultura de Michelangelo. Desde a infância, Herzl tinha uma afinidade com as imagens dessa estátua.
O Messias dirigiu-se a Moisés com estas palavras enigmáticas: “Por esta criança, eu orei!” Em seguida, voltou-se para Theodor e pronunciou um chamado significativo: “Vá e anuncie aos judeus que em breve retornarei, realizando maravilhas para o meu povo e para o mundo todo!” Quando Theodor acordou, ele se deparou com a dura realidade de que tudo não passara de um sonho.[1]
Infelizmente, a época do Bar Mitzvá[2] marcou o ponto de inflexão no relacionamento de Herzl com o judaísmo. Com uma solenidade tocante, Theodor subiu ao púlpito diante da Torá, a antiga e sagrada escritura, e leu a haftará, uma passagem das escrituras proféticas. O desempenho do jovem era motivo de profundo orgulho para seu pai, Jakob, cujos olhos se encheram de lágrimas enquanto testemunhava a conexão do filho com as raízes, uma celebração da herança que havia permeado gerações de sua família. No entanto, esse momento marcante também representava o começo de uma nova fase na vida de Theodor, à medida que ele enfrentava a transição para a idade adulta e começava a considerar questões que tinham relevância no mundo real, distantes das fantasias e das histórias míticas de sua infância.
As preocupações e incertezas de Theodor Herzl cresciam à medida que ele enfrentava o desafio de encontrar seu lugar no mundo que se modernizava rapidamente. Ele vivia com a constante apreensão de não ser totalmente aceito na sociedade predominantemente cristã e, muitas vezes, era assombrado por questionamentos internos pessoais.
O jovem Herzl, agora um homem, vagava pelas avenidas da cidade, profundamente perturbado pela sensação de ser diferente. Em momentos de angústia e reflexão, ele escrevia em seu diário: “A questão judaica me entristece profundamente.“
Em 1882, aos 22 anos, Herzl se deparou com a obra antissemítica de Eugen Dühring, renomado professor da Universidade de Berlim, intitulada “The Jewish Question as a Question of Race, Manners, and Culture”. Neste livro, Dühring retrata os judeus de forma pejorativa, como se pertencessem a uma raça em declínio, atribuindo-lhes características desprezíveis. A postura radicalmente negativa de Dühring acerca dos judeus sugeria medidas extremas para “resolver” a questão judaica. Em seu diário, Herzl expressou sua indignação em relação à obra:
“Como pode uma raça, que Dühring considera tão inferior e desprovida de méritos, ter perdurado por quinze séculos [sic!], enfrentando inúmeras perseguições? Como Dühring não reconhece a resiliência e a fé inabalável deste povo em seu Deus, mesmo diante de tantos desafios? Quando absurdos tão flagrantes são propagados por alguém tão erudito como Dühring, o que esperar da compreensão das massas?“[3]
A cidade se estendia diante de Theodor Herzl, com sua beleza inegável, os cafés elegantes e as margens cintilantes do rio Danúbio. No entanto, por trás dessa fachada encantadora, algo estava faltando. Embora os restaurantes servissem café preto como um oásis de conversas e ideias, a igualdade na sociedade ainda não fluía tão livremente quanto o café fresco da manhã.
[1] Branin entrevistou Herzl sobre sua infância, relatando a história do sonho e do professor: Life of Herzl, pp -17-18
[2] Max Herzl, seu tio, afirmou: “Herzl leu a Haftarah na sinagoga Tabakstrasse e fez um discurso agradecendo os pais e convidados”
[3] Diário de Herzl, 1882

