“A ideia que desenvolvo neste manuscrito é muito antiga: O restabelecimento do Estado Judeu”
Com estas palavras, Theodor Herzl dá início ao seu trabalho fundamental, “Der Judenstaat” (O Estado Judeu). Eu acredito que existe um toque profético na sua primeira frase, como se ele soubesse que no futuro iriam acusar a ideologia sionista de ter sido ‘criado’ na Europa, como uma ideia imperialista. No entanto, Herzl reivindica o sionismo como sendo intrinsecamente judaico, enraizado na mais profunda aspiração do povo judeu: o anseio milenar de retornar à terra ancestral e estabelecer uma sociedade.
Neste capítulo, exploraremos brevemente os temas chave apresentados por Herzl, evidenciando algumas de suas declarações mais significativas. Por meio de citações selecionadas, mergulharemos nas reflexões de Herzl sobre a condição judaica e seu caminho proposto em direção à soberania nacional.
Eu realmente recomendo ler ‘O Estado Judeu’ na integra. Apesar de não concordar com tudo, é incrível como ele consegue expor as ideias de maneira simples e didática. Ele articula um plano meticuloso, projetando as etapas do que seria necessário para transformar a visão sionista em realidade.
Parte 1: A Questão Judaica
“A questão judaica existe onde quer que os judeus vivam em números perceptíveis. Onde não existe, é levada pelos judeus no decurso das suas migrações.”
Theodor Herzl apresenta a “Questão Judaica” como um fenômeno social e político que surge sempre que uma comunidade judaica se torna significativa em número em qualquer sociedade. Esta “questão” não é uma inerência dos judeus em si, mas uma consequência das relações entre judeus e não-judeus, que frequentemente se manifesta através de preconceitos, discriminação e antissemitismo.
Herzl sugere que a questão judaica é persistente e móvel — ela viaja com os judeus onde quer que eles vão. O problema, portanto, não é geográfico, mas inerente à condição dos judeus na diáspora. Em outras palavras, não é o local onde os judeus vivem que cria a questão, mas a sua própria presença e identidade em sociedades que não os aceitam plenamente.
Essa observação estabelece a premissa para o argumento de Herzl de que a solução para a “Questão Judaica” não pode ser encontrada na assimilação ou na dispersão, mas sim na consolidação dos judeus como uma nação, em seu próprio território, onde possam governar-se e viver de acordo com suas próprias leis e costumes, sem a interferência ou opressão de outros povos.
“Todos os povos em meio aos quais os judeus vivem são, sem exceção, antissemitas avergonhada ou desavergonhadamente”
“Somos um povo: Os inimigos fazem com que o sejamos, mesmo contra nossa vontade, como tem sucedido sempre em nossa história. Prosseguidos, juntos nos erguemos e, de imediato, descobrimos nossa força. Sim, temos a força para criar um Estado e um Estado modelo.”
Parte 2: Implementação e Planejamento
“O plano pareceria suficiente louco se um único individuo se proupusesse a realiza-lo; mas se muitos se unem, imediatamente se torna razoável”
Este segmento do livro serve como uma espécie de guia ou manual para ação, onde Herzl não só convoca seus leitores a sonhar com um Estado Judeu, mas também a se envolverem ativamente em sua criação. Ele instiga uma visão pragmática e passo a passo de como este Estado poderia emergir, desde os preparativos iniciais até a eventual implementação de uma nova sociedade.
Herzl propõe um plano detalhado que inclui a aquisição de terras, o financiamento do estado através de um fundo nacional, a organização de uma sociedade de ação e a negociação com as grandes potências para garantir apoio político. Ele fala sobre a importância de criar uma infraestrutura econômica robusta, investir em tecnologia e agricultura e assegurar a autossuficiência do Estado.
Duas organizações seriam criadas:
- Society of Jews: uma entidade semelhante a uma organização governamental em exílio, trabalhando para preparar o terreno para a fundação de um Estado. A sociedade teria o papel de liderança até que um governo autossuficiente pudesse ser estabelecido. Foi nomeada no congresso de Organização Sionista Mundial.
- Jewish Company: uma empresa corporativa que teria o papel de organizar a emigração dos judeus para o Estado que se pretendia estabelecer, e de coordenar a compra de terras e a administração dos bens e propriedades dos emigrantes judeus. Foi a ideia que gerou o Fundo Nacional Judaico (Keren Kayemeth LeIsrael) e a Agência Judaica
“A Jewish Company se encarregará da liquidação de todas as fortunas dos judeus imigrantes e organizará a vida econômica no novo país”
“O que a Society of Jews tiver preparado cientifica e politicamente, a Jewish Company colocará em prática”
Parte 3: Trabalho, Moradia e Religião
“Creio que os judeus sempre terão muitos inimigos, como qualquer outra nação. Mas, quando estiverem radicados em sua própria terra, jamais poderão ser dispersos pelo mundo inteiro”
A Jornada de Sete Horas: Herzl menciona a “jornada de sete horas”, que se refere ao tempo de viagem de algumas partes da Europa para a Palestina, que na época poderia ser feita em cerca de sete horas. A proximidade física da Terra Prometida é salientada para mostrar a viabilidade do retorno dos judeus à sua antiga pátria.
A Sequência da Migração: Herzl prevê uma migração organizada para o novo Estado, começando com os mais pobres, que seriam os primeiros a se beneficiar e estabelecer as infraestruturas básicas. Seguiriam os trabalhadores de classe média e, eventualmente, os mais ricos. A ideia é que essa migração em estágios permitiria o desenvolvimento gradual e sustentável da sociedade e da economia no Estado Judeu.
Construção de Habitação: Quanto às casas, Herzl imagina a construção de habitações de alta qualidade, empregando engenharia e arquitetura europeias para assegurar conforto e durabilidade. Ele reconhece a importância de construir não apenas moradias funcionais, mas também casas atraentes e luxuosas para atrair judeus de todas as classes sociais.
Religião: Herzl imaginava que os rabinos seriam líderes espirituais e morais no novo Estado, mas também esperava que eles desempenhassem um papel em promover a ideia de que a migração para o Estado Judeu era uma aspiração digna e legítima. Ele queria que os rabinos ajudassem a convencer os judeus da Europa e de outras partes do mundo de que o retorno à Terra de Israel era um passo positivo e necessário para o povo judeu.
No entanto, ele também era muito claro em separar as funções religiosas do Estado das civis. Herzl via o futuro Estado Judeu como um lugar onde a liberdade de religião seria respeitada e a interferência religiosa nos assuntos do Estado seria limitada. Ele acreditava que os rabinos deveriam cuidar das necessidades espirituais dos judeus, enquanto o Estado deveria ser regido por leis seculares que garantiriam os direitos e liberdades de todos os cidadãos, independentemente de sua religiosidade ou falta dela.
“Os rabinos serão os primeiros a nos compreender, os primeiros a se entusiasmar com a causa, entusiasmando os demais a partir do púlpito…Reconhecemos nossa unidade histórica somente por meio da fé de nossos pais”
“Teremos, pois, uma teocracia? Não! A fé nos mantém unidos, a ciência nos torna livres”
Parte 4: Idioma, bandeira e exército:
“Haveremos de falar Hebraico? Quem, entre nós, sabe hebraico suficiente para pedir um bilhete de trem?”
Idioma: Herzl propôs um modelo igual a Suiça, em que as línguas nativas dos judeus seriam utilizadas até que o idioma mais comum no cotidiano seria imposto, sem violência, como o principal.
Bandeira: Herzl propôs uma bandeira para o Estado Judeu com sete estrelas de ouro sobre um fundo branco. As estrelas simbolizavam as sete horas de trabalho diário que ele propôs, refletindo uma ética de trabalho que ele acreditava ser vital para o sucesso do estado. Ele não estava prescrevendo um design final para a bandeira, mas sim sugerindo um conceito que representava ideais e esperanças para o futuro estado.
Exército: Herzl percebeu a importância de uma força de defesa para o novo Estado Judeu, especialmente para proteger suas fronteiras e manter a ordem interna. Ele acreditava que a sociedade judaica organizada seria capaz de formar suas próprias forças de defesa.
Palestina ou Argentina
Theodor Herzl esboça no seu livro uma preocupação sobre a localização do futuro estado judeu. Em relação à Palestina, Herzl argumenta que o vínculo histórico e espiritual dos judeus com essa região é um fator crucial. Ele destaca a importância simbólica e emocional de retornar à terra ancestral, visto como um direito histórico e um dever. Para Herzl, a Palestina não é apenas um local, mas um elemento central da identidade judaica, enraizado nas tradições, na religião e na história do povo judeu. Este retorno não só resolveria o problema do antissemitismo, segundo ele, mas também revitalizaria a conexão dos judeus com sua herança.
Por outro lado, ao considerar a Argentina, Herzl reconhece as vantagens práticas, como a abundância de terra e a relativa ausência de conflitos políticos. Ele percebe a Argentina como uma opção viável para a imigração em massa e o estabelecimento de um estado judeu, dada a sua estabilidade política e econômica e o vasto território pouco povoado. No entanto, Herzl conclui que, apesar desses benefícios, a Argentina não possui o mesmo significado simbólico e histórico que a Palestina tem para o povo judeu. Assim, embora a escolha da Argentina pudesse ser mais fácil em termos práticos, a Palestina é vista como a verdadeira aspiração do coração judeu.
Importante ressaltar que esta opção (Argentina) foi totalmente descartada logo no primeiro congresso e somente mais para frente outras opções foram colocadas na mesa (Uganda por exemplo), mas sempre como soluções temporárias para salvar os judeus perseguidos. Este assunto será explanado mais para frente.
Sionismo = Imperialismo?
Theodor Herzl é frequentemente citado em discussões sobre o sionismo e, ocasionalmente, algumas de suas palavras são interpretadas ou usadas para retratá-lo como apoiador de ideias imperialistas. Isso se deve ao contexto histórico da época em que ele viveu, quando o imperialismo europeu estava em seu auge, e muitos movimentos nacionais buscavam estabelecer um estado através de métodos que hoje podem ser vistos como imperialistas ou colonialistas.
Realmente, Herzl escreve no seu livro que através da ciência e modernidade, a presença judaica na palestina iria levar o progresso e desenvolvimento para região, o que pode ser interpretado como paralelo a retorica imperialista de “civilizar” territórios.
A citação frequentemente mencionada em debates sobre este tema é onde ele expressa que o Estado judeu seria parte de um “muro de defesa para a Europa na Ásia, um posto avançado da civilização contra a barbárie”. Esta afirmação tem sido interpretada como ecoando o discurso colonialista da época, que contrastava a “civilização” europeia com a “barbárie” de outras regiões.
Contudo, é crucial entender a citação dentro do contexto mais amplo das intenções de Herzl e do ambiente político da época. Herzl estava preocupado principalmente com a segurança e o bem-estar dos judeus, e suas propostas para um Estado judeu foram uma resposta ao antissemitismo virulento e à perseguição que os judeus enfrentavam na Europa. A ideia de ser um “baluarte da civilização” pode ser vista como uma tentativa de apresentar o projeto sionista de uma maneira que ganhasse o apoio das potências europeias, utilizando uma linguagem que elas encontrariam persuasiva.
Herzl não propôs a expropriação ou dominação dos habitantes árabes locais. Na verdade, ele imaginou que o estabelecimento de um Estado judeu também beneficiaria essas populações através do desenvolvimento econômico e da cooperação. No entanto, as consequências de longo prazo da migração judaica para a Palestina e o estabelecimento do Estado de Israel foram complexas e muitas vezes conflituosas, o que levou a críticas e debates contínuos sobre as implicações do sionismo.
Conclusão
“O que proponho só pode ser realizado com o livre consentimento da maioria dos judeus. Isto pode ser executado contra a vontade de alguns grupos, até contra a dos grupos de judeus mais poderosos na atualidade; mas nunca, absolutamente nunca, o Estado poderia ser realizado contra a vontade dos judeus”
A declaração de Herzl reconhece que a unidade e a determinação coletiva são essenciais para o movimento sionista. Ele entendia que, sem um amplo apoio dos judeus ao redor do mundo, o estabelecimento de um Estado judeu seria impossível. Isso não significa que cada judeu individual teria que concordar com a ideia, mas que uma maioria decisiva deveria endossar e se engajar no projeto para que ele se tornasse viável.
Herzl estava ciente de que haveria diversidade de opiniões entre os judeus em relação ao sionismo. Enquanto alguns iriam apoiar, outros estavam satisfeitos com a sua vida na diáspora ou temiam que o sionismo pudesse provocar mais antissemitismo.
Em resumo, Herzl estava argumentando que o sionismo, para ser legítimo e bem-sucedido, precisava ser um movimento do povo judeu, para o povo judeu, e principalmente, com o povo judeu. Ele via o futuro Estado judeu não apenas como uma solução para o antissemitismo, mas como a realização de uma aspiração coletiva judaica, uma expressão da identidade e da vontade comum de seu povo.
Como será que o povo judeu recebeu este livro tão provocativo e visionário? Será que o manifesto de Herzl ressoou entre os judeus como um chamado unificador, ou encontrou um povo fragmentado, disperso em suas várias identidades e experiências? A noção de um povo judeu unido, apesar de sua dispersão geográfica, é uma questão que perpassa o coração do sionismo. Eles estavam, de fato, tão diversificados e isolados entre si que a ideia de nação poderia parecer distante? Ou a experiência compartilhada do antissemitismo e a herança comum ainda eram fortes o suficiente para sustentar o conceito de um povo unido em destino e identidade?
À medida que nos aprofundamos nas páginas da história e exploramos as narrativas que se desdobram por toda Europa, continuaremos a desvendar como as sementes plantadas por Herzl em “O Estado Judeu” germinaram em um terreno tão diverso. Será que elas encontraram um solo fértil para crescer em um movimento unificado, ou será que o sionismo teve que lutar contra a divisão e a dúvida para alcançar seu lugar na história? Como Theodor Herzl conseguiria juntar delegados para um grande congresso sionista? As respostas a essas questões são fundamentais para entender a trajetória do povo judeu no final do século XIX. E diante de tal investigação, nos defrontamos com uma questão ainda mais profunda: Será que éramos mesmo um povo?

