Capítulo 6 – O Livro Proibido

O som rítmico das canções enchia o ar do Shtetl, vilarejo judaico, à medida que os Hassidim[i] envoltos em seus casacos longos e chapéus de pele, dançavam em círculos, fazendo um Farbrengen – uma reunião espiritual de fortalecimento e inspiração com alguns goles de Vodka. Em meio à celebração, a figura do Rebe, líder espiritual da comunidade, destacava-se. Seu olhar penetrante parecia enxergar a alma de cada um ali presente, e seu carisma era indiscutível.

Em um canto, porém, o jovem Aron Marcus sentia-se dividido. A alegria do Farbrengen não era suficiente para aplacar a curiosidade que o consumia desde que ouvira falar sobre o ‘livro proibido’. Para o Rebe e muitos dos Hassidim, este novo livro parecia uma ameaça, uma forma sutil de assimilação, tão perigosa quanto o reformismo. Afinal, para eles, a redenção viria somente pela mão divina, não por ações humanas e este livro de alguma forma desafiava isso.

Essa noite, no entanto, a curiosidade de Aron superaria sua obediência. Ele tinha ouvido rumores de que um judeu – um renegado – possuía uma cópia do livro proibido. Esse homem vivia nos arredores do shtetl, escondendo-se da comunidade que o havia rejeitado por sua associação com o sionismo. A escuridão oferecia a cobertura perfeita para sua missão secreta.

Aron se aventurou pelas ruas silenciosas até chegar à humilde cabana onde o traidor morava. O homem havia sido banido, mas Aron acreditava que ele poderia ser a chave para satisfazer sua sede de conhecimento.

Com um batimento cardíaco acelerado, Aron bateu à porta da cabana. Após um momento de silêncio tenso, a porta se abriu cautelosamente, revelando o homem de olhos cansados e barba por fazer.

 “Shalom Aleichem”, disse Aron com cautela.

“Aleichem Shalom”, respondeu o renegado, estudando o jovem Hassid de cima a baixo. “O que um jovem como você quer com alguém como eu, especialmente a esta hora?”

Aron engoliu em seco, reunindo coragem. “Eu ouvi falar de um livro, um livro proibido… dizem que você tem uma cópia.”

O renegado deu uma risada suave. “Ah, ‘Der Judenstaat’! Então é verdade que os rumores se espalharam até o coração do Shtetl.” Ele deu um passo atrás, permitindo que Aron entrasse. “Mas por que um Hassid como você estaria interessado em tais ideias consideradas heréticas?”

“Eu preciso saber”, respondeu Aron. “Preciso entender o que está causando tanto alvoroço e por que o Rebe vê isso como uma ameaça.”

O renegado acendeu uma vela, iluminando o modesto interior da cabana. Ele então se virou para Aron, seus olhos brilhando intensamente na penumbra. “Eu não tinha o livro até recentemente. Um sionista passou por esta aldeia sob a cobertura da noite e me entregou uma cópia. Ele disse que estamos no limiar de algo grande, um grande congresso… Todos os judeus se reunirão, algo jamais visto desde a destruição do Templo 2000 anos atrás.”

Aron arregalou os olhos, absorvendo a magnitude daquelas palavras. “Um congresso de todos os judeus? Mas… por quê?”

“Para discutir nosso futuro, nossa pátria”, disse o renegado com fervor. “É Theodor Herzl, o autor deste livro, ele que está organizando.”

Aron franziu a testa, confuso. “Theodor… Herzl? Ele é um rabino?”

O renegado riu alto. “Não, não! Ele não é um rabino. Herzl é um jornalista de Viena. Ele vê uma solução para o ‘problema judaico’, como ele chama. Uma pátria para os judeus. Na Palestina.”

Aron sentou-se, tentando processar tudo. “E por que você foi banido? Apenas por acreditar nessa visão?”

O renegado suspirou. “Por acreditar e por tentar espalhar a palavra. O Rebe e muitos outros veem isso como heresia, uma ruptura com nossa fé.”

Aron, ainda atordoado com as revelações, perguntou com hesitação, “Mas como pode essa ideia ser aceitável aos olhos de Deus? Não devemos esperar que a redenção seja divina?”

O renegado suspirou profundamente, olhando diretamente nos olhos de Aron. “Meu jovem, eu entendo essa perspectiva. Por muito tempo, eu também pensei assim. Mas veja, Herzl e a mensagem deste livro não estão contradizendo nossa religião. Pelo contrário, acredito que o que Herzl propõe está alinhado com o que a Torá nos ensina.”

Aron ergueu uma sobrancelha, claramente intrigado. “Como assim?”

“Quantos de nossos irmãos já sofreram e morreram em pogroms e perseguições? Quantas mães choraram o sangue de seus filhos? Quantos rabinos foram martirizados apenas por serem judeus?” O renegado parecia mais inflamado a cada palavra. “Chega, Aron! Quantas gerações mais precisarão derramar seu sangue esperando a redenção? O que Herzl propõe é que tomemos o destino em nossas próprias mãos, guiados pela fé e pelas escrituras. Isso não é heresia, é ação!”

Aron ponderou as palavras do renegado, sentindo o peso de séculos de sofrimento em suas palavras. “Mas o Rebe, e muitos outros, argumentam que a redenção virá somente pela mão divina…”

O renegado interrompeu, “E quem diz que Deus não está nos guiando através de Herzl? Pode ser que Herzl, e sua visão, sejam os instrumentos de Deus para nos trazer a redenção que tanto esperamos. A Torá nos ensina a sermos ativos, a lutarmos por justiça, a construirmos um mundo melhor. Talvez estejamos sendo chamados para construir essa terra prometida agora!”

Aron sentiu um arrepio percorrer sua espinha. As palavras do renegado desafiavam tudo o que ele sabia, mas havia uma verdade ressoando em seu interior.

“E se estivermos errados?” Aron murmurou.

O renegado colocou a mão no ombro de Aron e sorriu. “E se estivermos certos? Não podemos continuar a viver na sombra do medo. É hora de trilhar nosso próprio caminho, inspirados por nossa fé e pelas promessas de Deus.”

Aron Marcus[ii] ficou em silêncio por um momento, as palavras do renegado queimando no seu coração. Ele sabia que, depois desta noite, nada seria como antes. Tomando uma respiração profunda e olhando diretamente nos olhos do homem à sua frente, ele disse com determinação: “Por favor, me leve para este congresso. Preciso conhecer esse Theodor Herzl”


[i] Hassidim (ou Chassidim): Movimento judaico místico e espiritual fundado no leste europeu no século XVIII por Israel ben Eliezer, mais conhecido como Baal Shem Tov. Os Hassidim enfatizam a alegria, a devoção e a proximidade a Deus na prática diária, diferentemente da ênfase tradicional na erudição talmúdica. Ao longo dos anos, a Hassidut dividiu-se em várias dinastias, cada uma liderada por um Rebe. Eles são reconhecíveis por sua vestimenta distintiva e são amplamente encontrados hoje em Israel, nos EUA e em outras diásporas judaicas. Algumas Hassidut famosas: Chabad Lubavitch, Satmar, Breslov, Ger (ou Gur), Belz

[ii] Aron Marcus (1843-1916): Intelectual judeu-Hassidico e sionista precoce. Nascido em uma família tradicional na Alemanha, Marcus estudou na Universidade de Breslau e mais tarde se tornou um dos primeiros defensores do sionismo na Alemanha. Sua visão e paixão pelo sionismo foram influenciadas por sua profunda conexão com o judaísmo e pela convicção de que a solução para o problema judaico na diáspora seria a reconstituição de uma pátria judaica na Terra de Israel. Ele trabalhou ativamente para promover essas ideias e teve um papel influente no desenvolvimento inicial do movimento sionista. Esta dialogo é fictício, porém o Aron Marcus existiu, segue link com a sua interessante historia: https://thelehrhaus.com/scholarship/ahron-marcus-the-leading-hasidic-zionist-scholar-of-ancient-judaism-you-never-heard-of/