Capítulo 8 – Nova Jerusalém

A Alemanha dos anos 1890 vivenciava uma profunda transformação no seio da comunidade judaica. As sinagogas reformistas[i], com sua arquitetura imponente, mais pareciam catedrais cristãs do que os tradicionais templos judaicos. Nelas, os hinos eram entoados não em hebraico, mas em alemão, como um reflexo do desejo de integração e assimilação na sociedade germânica.

Em uma dessas sinagogas, localizada no coração de Berlim, os vitrais coloridos filtravam a luz do sol, criando uma atmosfera serena e introspectiva. O rabino Samuel Weiss subia ao púlpito, sua roupa reluzindo sob os raios de sol. A congregação, composta majoritariamente por famílias burguesas e intelectuais, esperava ansiosamente por sua preleção.

“Nós, judeus alemães, encontramos nosso lar aqui, em Berlim, e não nas antigas terras de Jerusalém”, começou o rabino Weiss, sua voz ecoando pela grandiosa sala. “Nosso dever é contribuir para a Alemanha, nossa pátria, e buscar adaptar as nossas tradições para a modernidade.”

Ao final do serviço, enquanto os membros da congregação trocavam cumprimentos e conversavam, o rabino Weiss foi abordado por um jovem chamado Isaac Cohen. Ele segurava um exemplar do livro “O Estado Judeu” de Theodor Herzl.

“Rabino”, disse Isaac, “o que pensa sobre estas ideias? Sobre o retorno à nossa terra ancestral?”

Weiss olhou para o livro e suspirou. “Herzl é um sonhador, e seus ideais, embora bem-intencionados, são impraticáveis. Não podemos simplesmente abandonar nossas vidas aqui e seguir para uma terra desconhecida. A solução para os judeus não está em fugir, mas em integrar-se.”

Isaac, porém, parecia não estar convencido. “Mas, rabino, e o crescente antissemitismo? Não seria uma terra própria a solução para a nossa segurança e futuro?”

Weiss olhou profundamente nos olhos do jovem. “Isaac, o sionismo é uma resposta emocional a um problema complexo. Devemos buscar a aceitação aqui, onde estão nossas raízes, nossa cultura e nossa vida. Não podemos simplesmente abandonar tudo isso por um sonho.”

O jovem Isaac assentiu, ainda que relutante e se despediu. Enquanto caminhava pelos corredores da sinagoga, os cânticos em alemão ainda ressoavam em seus ouvidos. Ele se perguntava se, de fato, Berlim poderia ser a nova Jerusalém para os judeus, ou se Herzl estava certo em sua visão de um lar nacional judaico.

Enquanto Isaac deixava a sinagoga, os raios de sol que filtravam pelos vitrais projetavam sombras alongadas nas ruas de Berlim. Uma brisa fresca carregava o aroma das padarias próximas e o burburinho da vida urbana. A cidade estava viva, vibrante, um testemunho do progresso e do potencial humano.

Mas, enquanto caminhava, uma sensação estranha invadiu Isaac. Uma visão, ou talvez um pressentimento. Ele viu uma Alemanha diferente, envolta em escuridão, sob o domínio de uma força maligna. Ele viu judeus sendo perseguidos, não mais por sua religião, mas por sua mera existência. Ele viu trens, campos e chaminés… E o nome “Auschwitz” ecoava em sua mente, um nome que ele nunca ouvira antes, mas que lhe transmitia um arrepio gelado.

Ao chegar em casa, assustado, Isaac colocou o livro de Herzl sobre sua mesa e sentou-se em sua poltrona, olhando pela janela. O entardecer dava a Berlim um tom melancólico. A visão que teve mais cedo, aquela premonição sombria, era como um eco distante, mas que, de alguma forma, ressoava no presente. Ele pensou em como a história tem seus momentos de ruptura, seus pontos de inflexão. Será que estavam à beira de um deles? “Quanto podemos prever? Quanto podemos mudar?”, Isaac se perguntou. Ele se lembrou de rumores sobre um congresso sionista que estava sendo planejado por Herzl e seus seguidores. O objetivo desse congresso era discutir essa ideia de um lar nacional judaico e reunir judeus de diversas partes do mundo para consolidar essa visão.

Na manhã seguinte, Isaac decidiu visitar novamente o rabino Weiss. Ao entrar na sinagoga, ele o encontrou em uma discussão acalorada com outros membros da comunidade. Aproximando-se, ele ouviu Weiss rindo e dizendo: “E pensar que nós, reformistas, nos juntamos com os ortodoxos para proibir esse congresso de ocorrer em Munique! Veja só, Isaac, pela primeira vez em muito tempo, nós e os rabinos barbudos concordamos em algo!” E soltou uma risada contagiante.

Isaac, curioso, perguntou: “Rabino, você se refere ao congresso sionista? Por que tanta oposição?”

Weiss deu de ombros. “Os ortodoxos veem isso como uma ameaça à tradição. E, da nossa parte, achamos que é um passo atrás na nossa busca pela integração aqui na Alemanha.”

Porém, Isaac, ainda perturbado pela visão que teve, afirmou: “Rabino, com todo o respeito, estou pensando em ir a este congresso. Preciso entender melhor o que Herzl e seus seguidores veem para o nosso povo.”

Ao ouvir Isaac expressar sua intenção de ir ao congresso sionista, o rabino Weiss não conseguiu conter um sorriso irônico.

“Oh, Isaac”, disse ele, balançando a cabeça em descrença, “vai atrás dos sonhadores, então? Talvez encontre um belo pedaço de areia do deserto para chamar de seu enquanto estiver lá! E tome cuidado para não tropeçar nas estrelas, já que todos parecem ter a cabeça tão alta nas nuvens!” Ele riu, dando uma piscadela cúmplice a outro membro da comunidade que estava próximo.

“É sempre bom ter sonhos, rabino”, respondeu Isaac, tentando manter a compostura, “as vezes eles são a única coisa que nos mantém de pé.”

O rabino suspirou, sua expressão suavizando um pouco. “Sonhe o quanto quiser, meu jovem. Só não esqueça de manter os pés no chão e lembrar-se de onde realmente pertence. Somos germânicos, cultos e modernos”. E com um aceno, virou-se e deixou Isaac ali, sozinho e mais determinado do que nunca em ir ao congresso.


[i] Reformismo Judaico: Surgido na Alemanha no século XIX, o Reformismo Judaico representa uma vertente do judaísmo que busca adaptar a prática religiosa às realidades modernas, enfatizando a ética e a moral em detrimento de certas práticas e rituais tradicionais. Um dos aspectos mais controversos do movimento no início foi a ideia de que “Berlim é nossa nova Jerusalém”, sugerindo que os judeus deveriam buscar integração total nos países em que viviam em vez de ansiar pelo retorno a Jerusalém. Esta visão contrastava fortemente com a posição sionista, que buscava o retorno dos judeus à sua terra ancestral de Israel. O Reformismo Judaico evoluiu ao longo dos anos e, hoje, abrange uma ampla gama de práticas e crenças.